Qual o limite da representação do real? Qual
a linha que divide o documentário da encenação? CORA, primeiro longa dirigido
pelos premiados cineastas Gustavo Rosa de Moura (“Canção de Volta”, “Cildo”) e
Matias Mariani (“Cidade Pássaro”, “A vida privada dos hipopótamos”), levanta
essas e outras discussões a partir de uma relação com o romance “Antonio”, da
escritora Beatriz Bracher, publicado em 2010. O filme que fará sua estreia
mundial no Festival do Rio, no qual participa da competição de longas da Première
Brasil 2021, é uma coprodução entre Brasil e Dinamarca e estreia nos cinemas no
dia 23 de dezembro, com distribuição da Pandora Filmes.
Apesar do tom documental, CORA é
todo ficcional e se passa num futuro próximo, no qual o Brasil é um país em
ruínas. A personagem-título, uma dinamarquesa, encontra um filme inacabado que
a liga a seu pai, um brasileiro chamado Benjamin. No material, Benjamin
investigava a história de seus pais (avós de Cora): Teo, que enlouqueceu
e morreu, e Elenir, uma figura cheia de mistérios que ele, Benjamin, nunca
chegou a conhecer. Na medida em que a investigação avança, a intrincada
história dessa família vem à tona. E vemos tudo, agora, pelos olhos da
dinamarquesa Cora.
Nos letreiros finais, CORA é creditado como
“um filme resposta a Antonio”, romance publicado em 2010, e finalista dos
prêmios Portugal Telecom e Jabuti e que foi escrito por Beatriz Bracher, mãe do
diretor Matias Mariani. Curiosamente, ao ler o livro, Mariani o classificou
como “inadaptável”, mas Rosa de Moura já cogitava fazer no formato que
combinava documentário e ficção, e juntos resolveram encarar o desafio de
adaptar a obra. “No
princípio, achávamos que se tratava de uma adaptação no estrito senso, como
qualquer outra. Ao longo do processo, porém, o filme foi se distanciando do
livro. E foi a própria Beatriz Bracher, no caso minha mãe, que, quando assistiu
um primeiro corte do filme, sugeriu essa formulação de filme-resposta, pois
achou que o filme propunha uma reação ao que o livro narra, e não propriamente a
sua simples transposição para outra mídia. Nós logo gostamos dessa ideia e isso
passou a nortear o final da edição do filme, tornando-o de fato uma resposta ao
livro”, conta Mariani.
Fazer um filme experimental que combina
diversas linguagens implicou numa série de desafios. Para Mariani, o
maior foi imaginar um futuro, um mundo transformado. “Conceitualmente, o filme é realizado
em um futuro no qual o Brasil nem existe mais. Imaginar como seria isso, qual
seria esse futuro a partir do qual o filme fala para o espectador, foi a nossa
maior dificuldade, na minha opinião. Ao mesmo tempo que achava importante
manter vaga a descrição desse futuro no filme, era importante, para o
construirmos, termos uma imagem clara, mesmo que esta não aparecesse para o espectador.”.
Rosa de Moura concorda, e vai além: “acrescento a isso a dificuldade em
contar uma história tão complexa, tão cheia de nomes e viradas, em que muitas
camadas de tempo se sobrepõem, sem deixar o espectador confuso ou entediado.”.
CORA é um filme bastante peculiar também em sua estética,
incorporando intervenções e elementos tipicamente ligados à mídia digital. Os
diretores fizeram uma vasta pesquisa em torno desse tipo de linguagem para
chegarem ao visual do filme e dessa forma o glitches, datamoshing, pixel
sorting e outros conceitos já muito usados em glitch art, mas ainda não muito
conhecidos no mundo do cinema narrativo, foram inspiração para a fotografia do
filme. Além disso, o trabalho do editor Alexandre Wahrhaftig e do colorista
Bruno Rezende foram muito importantes na construção da linguagem de CORA,
tanto na discussão estética quanto nos caminhos técnicos que esses
profissionais propuseram. No som, Peter Albrechtsen foi incansável nas suas
pesquisas de distorções sonoras e construções de climas, e em como construir
essas distorções e esses climas de forma a reforçar a imersão no filme sem
perder o aspecto de documentário nem prejudicar a compreensão das falas.
Apesar de se passar no futuro, CORA tem
muito a dizer sobre e para o Brasil de hoje. “Infelizmente, o futuro que imaginamos parece estar mais
próximo do que nunca. Um Brasil lamacento, em decomposição e fechado ao mundo
exterior era, quando começamos o projeto, algo já em formação mas ainda
distante. De repente, em poucos anos, foram tantos retrocessos e absurdos, e a
situação do país (e do mundo) piorou tanto, que a realidade que pensamos pro
filme se aproximou de nós. Cora propõe uma reflexão sobre o papel das famílias
da elite paulistana nesta decomposição, e o quanto que pessoas ditas
esclarecidas quando confrontadas com a nossa terrível desigualdade e com nossas
heranças escravocratas escolheram não fazer nada - o que não deixa de ser, em
si, uma escolha”, concluem.
Sinopse
2064. Cora, uma dinamarquesa, encontra um
documentário inacabado no qual Benjamim, seu pai brasileiro, tentava
investigar, 50 anos antes, a história dos próprios pais dele: Teo, que morreu
louco quando ele ainda era criança, e Elenir, uma mulher misteriosa de quem ele
mal ouviu falar. Em sua investigação, Benjamin descobre que ambos fazem parte
de um complexo quebra-cabeça familiar, cheio de traumas e tabus, no qual ele
começa a se ver como uma das peças principais. O material presente no
documentário de Benjamim é organizado e comentado por sua filha, na tentativa dela
de compreender o passado perdido de sua família.
Ficha Técnica
Direção e Roteiro: Gustavo Rosa de Moura, Matias Mariani
Produção: Gustavo Rosa de Moura
Coprodução: Tatiana Leite, Valeria Richter
Elenco: Vera Valdez, Fabio Marques Miguez, Sylvio Ziber, Andre
Whoong, Charlote Munk
Desenho de som: Peter Albrechtsen
Edição: Alexandre Wahrhaftig, Bernardo Barcellos e Luísa Marques
Edição Final: Alexandre Wahrhaftig
Pós-produção: Bruno Rezende
Gênero:
drama
País:
Brasil, Dinamarca
Ano:
2021
Duração: 81 min.
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